quarta-feira, 30 de março de 2016

Dois

Acostumado eu já estava
às horas vazias, sem par
A uma espera imprecisa
sem termo
às noites sem lua, sóis sem calor
A não saber como desaguar
O querer do meu corpo
A medir a paixão
em doses tão pequenas
que não atrapalhassem
minha ansiada indiferença
Depois a vida, em geral,
por mim maldita,
Contradisse-me a opinião
Os demônios supostamente mortos
ressurgiram terríveis
frente a mim, para minha surpresa,
também encontrado vivo
Renovado, Sedento e faminto
Cansado de ser um a esperar
O que não sabe, o que não quer saber
você chegou, e somos dois, sem pejo algum
Chegou, como chega a luz na absoluta escuridão
de início, cegando quem já se encontrava cego
logo após compondo com os fantasmas, com as sombras
o belo retrato do que pode ser o fim do solo triste
de uma longa e intempestiva canção
Um

Fazer-me um contigo?
Agradeço,
Mas dispenso.
Não lograria te unindo a mim
bem algum
Se de mim és a parte que
prefiro
tens como razão disso
o que de mim diferes
Tu que és sempre outra

Sempre outra que não tu mesma
Muito menos seria
Se, por tristeza, viesses a ser eu
Quero-te ao meu lado
Sem fazer-te espelho
Quero que não me sejas
Para que o afeto floresça
Para que condenado eu não esteja
a ser apenas Um
Que sequer seja tu.
Zero

E quem se importa se eu quero o mundo de outra forma?
A quem importo se ninguém me importunasse?
Pelo que eu anseio é um silêncio de antes do começo
O mesmo silêncio logo depois de todo fim
Queria teus dois olhos fixos em mim
Adivinhando-te a súbita intenção
Ver minhas marcas em teu corpo como carícias
que não souberam, à força, se medir
pois eram tantas e o tempo é tão curto
pois eram muitas e a morte é sempre logo ali
Ao redor de nós, que somos dois, não feitos um
O vazio da história, a recriação do corpo, o passado algum
O futuro só tolerado com o único fito de nos distrair
Em conversas despropositadas sobre o que será de nós
que nunca mais seremos o que o antigo espelho um dia viu
Nunca mais seremos e pouco queremos ser
Pois a linha a nos unir não se distende sem nos partir.
Que ninguém nos saiba, nos veja ou mesma exista
Era o que eu queria, o que a nada mais importa
Quero o absoluto zero, despir-me do que fomos
ser tua fotografia na parede vazia do universo.

quarta-feira, 2 de março de 2016

mea culpa, mea maxima culpa

Não é sem pudor que ganas eu tenho de confidenciar
À senhora e dona do animal pulsante alojado em meu peito
Que em certas horas do dia, verdadeiramente, acho a vida um horror
Com suas tristezas tão previsíveis quanto provisórias
Suas cartas marcadas e bilhetes perdidos de loteria
Com a indesejada morte deambulando por toda parte,
sem ter ninguém que daqui a uns instantes nela não esbarre
Com a generalizada pobreza de sentimentos nobres
O sono perdido acumulado alimentando a mais-valia
Epidemias que tiram dos anjos suas depenadas asas
O cheiro que distraído me lembra a panela de arroz queimada
A cadela prenhe sob a chuva
A amante mal amada

A fome do outro que não chega a doer no embrutecido vizinho
A topada desnecessária no desnecessário cômodo súbito invisível
A alegria que só pode existir de si mesma desconfiada
A espera angustiada de alguma grande tragédia em alguma próxima esquina
Tudo isso em certos incertos dias
costumava levar-me à beira de debulhar-me em lágrimas
Agora no lugar há uma tosse seca, forjada,
do choro perdi o hábito que o mais que lembro é das horas em que me sinto
apartado da dor do mundo, dela esquecido
Quando miro em teus belos olhos meu incontido sorriso
Confesso minha culpa, mea maxima culpa, ante o espetáculo dolorido:
Involuntariamente eu acho, e eu não queria achar
(a vida, a despeito de tudo, em meu peito insiste
e a carne revolta sobre os ossos tem desejo a sobejar)
vale o que tiver o que ser desde que tu existe,
vale e valerá.
Habitat quase natural

Não posso me distrair
Sequer por um minuto
Sempre que não vejo o que olho
Quando me falam e não escuto
Meu pensamento - animal não
domesticado
Foge para junto de ti.