sexta-feira, 10 de junho de 2016

Descobrimento

Conhecia o amor apenas
Como a um animal faminto:
“Devoro-te ou me devoro”.

Não sabia o que seria
o querer bem
Que não fosse por ser
O Bem junto de si.

Não conhecia o amor
Mesmo dizendo
Ter amado tanto
E por tanto tempo.

E foi preciso que o tempo
fosse tão pouco
Para que ensurdecido reconhecesse
Seu íntimo desconhecido.

Conheceu o amor apenas
E do conhecimento jorrava
todos os seus dias não vividos

A renúncia como prova
Mas prova de amor não consentida
Descartando testemunhas, cúmplices e registros.

Acaso o amor não basta?
Acomodada dentro do peito,
a falta incomodando
Mostra que nem o amor pode bastar
Quando se ama tanto.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Empreendedorismo

Nunca teve vocação para os negócios.
Todos os seus empreendimentos
inapelavelmente fracassaram.
E quando de sua morte,
O óbvio diagnóstico:
Falência múltipla dos órgãos.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Reminiscências

Queria poder te dizer palavras novas
Que versassem sobre sentimentos
Sequer ainda existentes
e te suscitassem algo de profundamente
Belo e redentor
Como num sonho ainda adolescente
Onde ao fim do percurso me deparava
com a letra que ao texto dos dias faltava
e resplandecia tudo com um óbvio sentido
Pressentido em absolutamente todas as esquinas
Alentando o coração e acalmando o pensamento

Abrir um caminho insuspeito é um gesto doloroso
Cujo preço somente é perder-se para sempre
Sem olhar para o lado e ver o já feito
Sem carregar nos bolsos o relato de qualquer sobrevivente
Queria te dizer palavras que fossem realmente novas
Te conduzir a paragens que eu mesmo desconheço
E que me trouxessem um cheiro esquecido
Numa queda inocente de infância
Algo de indefinidamente perdido
Escorrendo entre os coloridos ladrilhos

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Fazer-se um...
Belo, mas incompreensível.
Em que alguém que se transformasse em ti mesmo
te interessaria além do que possa interessar a própria solidão?

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Uns nus versos

Tua imagem nua
a ler-me uns versos
Cravou-se em meus olhos
Gravou-se em meu gosto

Tua voz rouca a titubear ressoa
em um gesto suave de supremo esforço:

Poemas são destroços lançados ao mar!

Poemas são escombros
a amparar em um naufrágio
raros sobreviventes resignados a ensaiar
tímidos acenos a um céu insistente e vazio
ou mesmo um salobro sorriso
para o momento em que -por cansaço -
for sereno o desterro

São tentativas exíguas
de remanescer ao próprio corpo
pela conjunção da carne sedenta e da palavra aquosa
São as tábuas da salvação rotas pelo desconsolo
São as asas dos pássaros a sobrevoar, frente à morte,
nossa breve já duradoura vitória.

Poemas são destroços lançados ao mar!

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Quando os ladrões adormecem

Passo após passo
Um caminho longo e deserto
cai bem
em certas horas da noite
Quando os ladrões adormecem
E os cães sentem muita preguiça
para esbravejar
contra o imprevisto e indeciso andarilho
a considerar:
É melhor ter coragem ou se render de vez?
ter brios de desistir
ou simplesmente deixar para lá?
As cogitações refletem-se
nas poças da água
e as estrelas que restam ver
pelo céu poluído
testemunham coisa alguma a se concluir
O sol começa a nascer
de um modo um tanto esquisito
E no rubro arrebol uma questão retine:
Era esse mesmo o script?
melhor não seria pôr um ponto final?
pareceu-lhe tola a atrevida interrogação
Afinal, pontos finais cabem a Deus decidir
O destino é mais suportável
quando habitado
por um outro querer
E o que Ele quer? O que isso faz de ti?
É melhor estar de pé
Mesmo tropeçando
Mesmo que seja amargo, é melhor estar aqui
Decidido isso,
deitou-se e pôde adormecer.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Rotina

Deparei com minha própria alma em suspeita esquina
Quis falar-lhe, e então correu sem pestanejar.
Depois tomei café amargo apenas porque não gosto
E a vida não parece ser feita para que lhe gostem.
Folheei o jornal para soar elegante como o meu avô.
Afinal, literatura é coisa para ociosos: O que, de fato,
em essência, no começo do expediente reconheço que sou
Cruzei o caminho de um conhecido, de hábito, bem-humorado
que nesse dia, para minha alegria, carregava um cadáver no olhar
Cumprimentei-o por obrigação e logo lembrei das belas pernas
de minha esposa.
Quis voltar para casa, mas casas não parecem feitas para se voltar
Faz dez anos que, ao meio dia, saio para comprar cigarros
E sempre retorno pelo simples medo de incorrer no clichê
Fiquei olhando no retrovisor um sujeito antipático e mau,
porém bem-intencionado
A esbarrar com sua alma onde menos espera.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Dois

Acostumado eu já estava
às horas vazias, sem par
A uma espera imprecisa
sem termo
às noites sem lua, sóis sem calor
A não saber como desaguar
O querer do meu corpo
A medir a paixão
em doses tão pequenas
que não atrapalhassem
minha ansiada indiferença
Depois a vida, em geral,
por mim maldita,
Contradisse-me a opinião
Os demônios supostamente mortos
ressurgiram terríveis
frente a mim, para minha surpresa,
também encontrado vivo
Renovado, Sedento e faminto
Cansado de ser um a esperar
O que não sabe, o que não quer saber
você chegou, e somos dois, sem pejo algum
Chegou, como chega a luz na absoluta escuridão
de início, cegando quem já se encontrava cego
logo após compondo com os fantasmas, com as sombras
o belo retrato do que pode ser o fim do solo triste
de uma longa e intempestiva canção
Um

Fazer-me um contigo?
Agradeço,
Mas dispenso.
Não lograria te unindo a mim
bem algum
Se de mim és a parte que
prefiro
tens como razão disso
o que de mim diferes
Tu que és sempre outra

Sempre outra que não tu mesma
Muito menos seria
Se, por tristeza, viesses a ser eu
Quero-te ao meu lado
Sem fazer-te espelho
Quero que não me sejas
Para que o afeto floresça
Para que condenado eu não esteja
a ser apenas Um
Que sequer seja tu.
Zero

E quem se importa se eu quero o mundo de outra forma?
A quem importo se ninguém me importunasse?
Pelo que eu anseio é um silêncio de antes do começo
O mesmo silêncio logo depois de todo fim
Queria teus dois olhos fixos em mim
Adivinhando-te a súbita intenção
Ver minhas marcas em teu corpo como carícias
que não souberam, à força, se medir
pois eram tantas e o tempo é tão curto
pois eram muitas e a morte é sempre logo ali
Ao redor de nós, que somos dois, não feitos um
O vazio da história, a recriação do corpo, o passado algum
O futuro só tolerado com o único fito de nos distrair
Em conversas despropositadas sobre o que será de nós
que nunca mais seremos o que o antigo espelho um dia viu
Nunca mais seremos e pouco queremos ser
Pois a linha a nos unir não se distende sem nos partir.
Que ninguém nos saiba, nos veja ou mesma exista
Era o que eu queria, o que a nada mais importa
Quero o absoluto zero, despir-me do que fomos
ser tua fotografia na parede vazia do universo.

quarta-feira, 2 de março de 2016

mea culpa, mea maxima culpa

Não é sem pudor que ganas eu tenho de confidenciar
À senhora e dona do animal pulsante alojado em meu peito
Que em certas horas do dia, verdadeiramente, acho a vida um horror
Com suas tristezas tão previsíveis quanto provisórias
Suas cartas marcadas e bilhetes perdidos de loteria
Com a indesejada morte deambulando por toda parte,
sem ter ninguém que daqui a uns instantes nela não esbarre
Com a generalizada pobreza de sentimentos nobres
O sono perdido acumulado alimentando a mais-valia
Epidemias que tiram dos anjos suas depenadas asas
O cheiro que distraído me lembra a panela de arroz queimada
A cadela prenhe sob a chuva
A amante mal amada

A fome do outro que não chega a doer no embrutecido vizinho
A topada desnecessária no desnecessário cômodo súbito invisível
A alegria que só pode existir de si mesma desconfiada
A espera angustiada de alguma grande tragédia em alguma próxima esquina
Tudo isso em certos incertos dias
costumava levar-me à beira de debulhar-me em lágrimas
Agora no lugar há uma tosse seca, forjada,
do choro perdi o hábito que o mais que lembro é das horas em que me sinto
apartado da dor do mundo, dela esquecido
Quando miro em teus belos olhos meu incontido sorriso
Confesso minha culpa, mea maxima culpa, ante o espetáculo dolorido:
Involuntariamente eu acho, e eu não queria achar
(a vida, a despeito de tudo, em meu peito insiste
e a carne revolta sobre os ossos tem desejo a sobejar)
vale o que tiver o que ser desde que tu existe,
vale e valerá.
Habitat quase natural

Não posso me distrair
Sequer por um minuto
Sempre que não vejo o que olho
Quando me falam e não escuto
Meu pensamento - animal não
domesticado
Foge para junto de ti.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Desenlaces

Com passos leves e gestos insuspeitos
Montou seu ninho no canto superior esquerdo
No peito de um andarilho velho
caminhando sonhos desencaminhados

Sem que soubesse brotou sem jeito
Botão de afeto onde antes deserto
De todo sentimento abertamente terno
Que possa habitar alma pretensamente humana

Como veio partiu o visitante
Sem aviso prévio, sem despedidas torturantes
Como se apenas uma brisa leve o levasse
Deixando marcado o perfume suave
Dos laços inesperados
Das passagens que nunca passam.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

****

Não posso gostar quando te calas,
Mesmo ao preço da alegria
De te supondo morta, encontrar-te viva

Não posso apreciar o tempo em que emudeces
e estás, sem sonhar,
como que adormecida.

Posso suportar teus interstícios,
as muitas variações da lua
A influência má dos signos do zodíaco,
A lâmina fria da madrugada escura

Posso estancar o meu zeloso ciúme,
Dessangrar-me em deserta esquina
Enlutar-me por teus mortos
Amores, abrir mão de meus dias

Mas não posso gostar quando te calas
Ao querer-te, ver-te calada
Como sequer posso estimar a mim mesmo,
sem que silencie para que ressoe tua palavra.

Não posso gostar quando tu te calas
Ao ouvir-te, não te ver em nada
Como não preciso que a inevitável visita
Que a tudo e a todos o tempo todo arrasta
Venha encontrar aberta, a convidá-la,
a porta de nossa casa.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016


AR

Quando antes eu quis estancar
Conter, dormir, deixar para lá
Não ver os versos que vertem teus olhos
Vertiginosos, risonhos
Não ver o que há de melhor para olhar
Foi o quanto pelo avesso eu rezei
Pedindo para o tempo apressar
Seu miúdo passo para o espaço
Entre nós se apequenar
Ao ouvir escrito em meus lábios
Três doces silabas, ao acaso de me descuidar
Escrevi uma rima pobre cujo único valor reside
Naquela a quem ela, inexoravelmente,
Há de se destinar.
Meu credo, meu branco verso,
meu ar.